Publicado no Jornal Estadão, São Paulo/SP, p. 01, em 28 de outubro 2022
Vivenciamos no Brasil uma epidemia de crimes de homicídios, em sua esmagadora maioria, vinculados às disputas entre facções criminosas pelo controle do tráfico ilícito de entorpecentes. Apenas no ano de 2017, o mais violento de nossa história, foram 65.602 assassinatos.
Fechar os olhos para essa triste realidade, mediante a ingênua crença que equipara o tráfico de drogas a outros crimes cometidos sem violência ou grave ameaça, representa uma inequívoca proteção deficiente à sociedade brasileira.
O tráfico de drogas não mais representa apenas uma ofensa ao bem-jurídico “saúde pública”. A delinquência organizada produz vários efeitos secundários, em especial a morte de pessoas inocentes em razão desses confrontos que ocorrem diuturnamente, à luz do dia, ocasionando uma desagradável sensação de insegurança nos territórios dominados pelo tráfico. Nossas cidades se tornaram palcos de um constante “estado de guerra”. Estamos caminhando para um narcoestado e o pior, aqueles que deveriam trabalhar para mitigar os efeitos danosos do tráfico de drogas estão normalizando esta situação. Territórios que não se pode entrar livremente, pessoas com armas de guerra nas ruas a qualquer hora do dia e da noite, tribunais do crime que agem com efetividade e violência extrema para solucionar demandas que o Poder Judiciário deveria fazê-lo. Tudo isso serve para deslegitimar e retirar a confiança do Poder constituído e, assim, aumentar a violência e a força intimidatória do crime organizado.
As organizações criminosas que exploram o tráfico de drogas operam em um verdadeiro “método fordista”, de modo que a divisão de tarefas da “empresa” é fielmente delimitada e executada pelos traficantes em suas variadas funções. As facções da atualidade são regidas por estatutos próprios, e quem descumprir as regras é punido severamente, restando claro que a figura do “traficante avulso” ou “traficante freelancer” não mais faz parte de nosso quotidiano. Todos estão umbilicalmente vinculados ao crime organizado. Todo e qualquer entorpecente vendido nas grandes cidades advém de “empresas criminosas”.
Não é possível, nesse contexto, que criminosos atuem de forma isolada. A uma, porque toda a estrutura logística para a chegada da droga ao consumidor final depende de uma rede complexa e grandiosa. A duas, os “pontos” onde são vendidas as drogas são territórios constantemente disputados e defendidos até com a própria vida, de modo que a “concorrência” entre facções não permite pontos de revenda com mais de um dono. A três, para defesa desses pontos, mesmo que o traficante esteja sozinho, há toda uma estrutura de segurança que, caso necessário, será acionada rapidamente e atuará com a força (ilegítima) capaz de causar medo, pânico e mortes. A quatro, não se pode ser inocente ao ponto de achar que o traficante que está na linha de venda deva, para fazer parte de uma organização, saber de todos os trâmites da estrutura. Como já se falou, o crime é organizado. Desse modo, as informações são compactadas, a fim de que cada “soldado do tráfico” saiba apenas o necessário para sua atividade, sem colocar em risco as demais peças da estrutura criminal. O crime é organizado, ainda que muitos (seja por ideologia, seja por ingenuidade) queiram enxergá-lo de forma diferente.
A regra contida no art. 33, § 4º, da Lei de Drogas (Lei nº 11.343/06), portanto, não mais encontra eco na realidade das cidades brasileiras, eis que a figura do “tráfico privilegiado” deixou de existir no mundo real. A considerável redução de pena (diminuição de até 2/3 da reprimenda aplicada) trazida pelo citado dispositivo legal exige que o agente seja primário, de bons antecedentes, não se dedique às atividades criminosas, nem integre organização criminosa.
Com base nessa ultrapassada correlação entre a norma e a realidade, os tribunais superiores têm estendido a aplicação do mencionado art. 33, § 4º, de modo a reconhecer o tráfico privilegiado para criminosos que são flagrados com toneladas de entorpecentes. Isso ocorre com o argumento de que a quantidade excessiva de drogas, por si só, não é fator impeditivo à aplicação da benesse legal.
Cientes desse laxismo jurisprudencial em relação ao tráfico de drogas, tornou-se praxe nas “empresas” criminosas determinar que os traficantes sempre guardem consigo para a venda pequenas quantidades de entorpecentes e deixem escondidos em bueiros ou outros locais de fácil acesso o restante de suas drogas. Assim, em casos de prisões sempre irão alegar que são “pequenos traficantes”, com o fito de serem agraciados com a causa de redução de pena.
Os tribunais superiores passaram a exigir que antes das prisões os policiais façam campanas para a obtenção de outras provas, como se aos agentes de segurança fosse possível a utilização de uma capa de invisibilidade.
O mundo real (e não o metaverso) nos permite concluir que o tráfico privilegiado se tornou uma verdadeira ficção jurídico-legislativa que tem sido levada ao extremo pela jurisprudência, a partir de uma interpretação lastreada em um vácuo entre a norma e a realidade. Resta claro que, apesar de a figura do tráfico privilegiado ter sua eficácia jurídica – já que produz efeitos no mundo normativo-, não mais possui sua eficácia social, pois é impossível sua adequação ao mundo dos fatos. Com isso, apesar de a benesse legal ter a finalidade de se preocupar com o “pequeno traficante”, os criminosos passam a utilizá-la para fugir da punição estatal mais severa (e justa). Ou seja, a norma está sendo utilizada para ludibriar o Estado.
Essas benesses desprovidas de apego com o mundo real, como bem observado pelo filósofo Mario Ferreira do Santos, chegam a ser uma tendência até viciosa em encarar o criminoso como vítima. Tal benevolência exagerada e equivocada faz com que a legislação e a jurisprudência tenham uma conduta bárbara e, até certo ponto, tribal. Como essas sociedades primitivas, o traficante é tratado com parcimônia, sendo a lesão praticada por ele equivocadamente encarada de menor importância. Os que sofrem as lesões são desprezados. Os que praticam as lesões são irmãos de tribo, por isso merecem toda condescendência.
Talvez no mundo paralelo, virtual e imaginário do metaverso seja plausível acreditar na existência do chamado “traficante artesanal”, representado pelo criminoso inofensivo e “boa praça”. Essa figura existe apenas no imaginário de alguns que tomam decisões importantes que irão impactar no quotidianos de toda a sociedade. O tráfico de drogas mata! O tráfico de drogas manda matar! O tráfico de drogas mata inocentes!
Não podemos enxergar o hoje com as lentes do ontem. O art. 33, § 4º, da Lei de Drogas representa um instrumento jurídico que no passado teve sua serventia. Isso é uma anacronia hermenêutica!
De outra sorte, a realidade contemporânea evidencia que tráfico de drogas é sinônimo de sangue, de dor e de sofrimento. E não apenas para os que estão envolvidos no crime e seus familiares, como também para toda comunidade que se vê refém da violência e sufocada pela força dos traficantes.
Jamais podemos olvidar, conforme nos ensinou Max Weber, que o Estado é o monopolizador da violência legítima e um dos instrumentos para a efetivação desse dever e o Direito Penal. Mediante uma percepção leniente em relação ao tráfico, o Estado está deixando de ser Estado, pois não mais quer exercer o poder-dever de proteção à sociedade. Consequentemente, fomenta o crescimento de forças não estatais que têm se aprimorado no exercício gratuito e irresponsável da violência, com riscos de causar danos irreparáveis ao Estado Democrático de Direito.
Negar a realidade, desprezar a organização dos traficantes, fomentar o reconhecimento de tráfico privilegiado com todas as suas benesses legais terá um preço. A progressão rumo à barbárie, uma vez que o Direito passará a ser completamente ignorado. E, nas palavras do jurista francês Georges Ripert: “Quando o Direito ignora a realidade, a realidade se vinga ignorando o Direito”.
Leonardo Augusto de Andrade Cezar dos Santos é Mestre e Doutor (Universidad de Salamanca, Espanha); Promotor de Justiça Titular do Tribunal do Júri da Comarca de Vitória (ES).
Rodrigo Monteiro é Doutor (Universidad de Salamanca, Espanha); Mestre (FDV); Promotor de Justiça Titular do Tribunal do Júri da Comarca de Vitória (ES).
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